Identidade E Empreendedorismo Em Portugal
Damos valor à chuva no Inverno, depois duma semana de dias escuros, frios e ruidosos? Damos valor à chuva no Inverno, quando já nos fartamos do guarda chuva, das roupas pesadas, do cabelo molhado? Não.
Mas, quando saímos pela porta fora e sentimos uma onda de calor, que mais parece o bafo unsuportável do cornudo, num sopro sádico para infernizar a nossa vida, num daqueles dias em que a terra parece um forno e o suor cega-nos de ardor, nesse dia de Verão, sentimos de imediato saudades daqueles pingos frescos de água do céu, das lágrimas doces e geladas da divina natureza.
Sentimos saudades do que perdemos, de quem está longe. Em Portugal, perdemos riqueza, perdemos emprego.
Nesta sociedade onde todos os licenciados, menos um ou dois, querem ser funcionários públicos, preferencialmente professores ou juízes, o Empreendedor, criador de riqueza e de emprego, não é apenas um agente económico, aquele que faz as coisas acontecerem, a roda ande à roda, a lua não caia na terra, o sino da igreja da aldeia toque à hora certa, nem atrasado, nem adiantado, mas o D. Sebastião desta crise soberana.
Ora, um D. Sebastião não cabe no conceito utilitário do micro empreendedor, que é pai, marido, filho, irmão, amigo, dono do seu negócio e sujeito do seu destino. Não chega, como fez o meu pai, emigrar com 17 anos, duma pequena aldeia de casas de xisto, no meio da serra, do mato e das montanhas, depois de trabalhar ainda criança numa mina de volfrâmio, para o estrangeiro, onde criou o seu próprio negócio. Esse é o caminho do condenado, que tenta fugir dum destino sem oportunidades e sem futuro.
O Empreendedor cria singularidades do nada, vê o que os outros não conseguem ver, salta do topo dum prédio com a certeza que cairá num colchão abandonado e vive o estilo de vida de quem tudo transforma em ouro, com as emoções duma mãe que pariu aos berros, enraivecida de dores, com vontade de dar um pontapé nos tomates do marido, mas radiante de alegria, fascinada com o poder de criar.
O Empreendedor herói vive num estado alterado de consciência, por onde exprime mais do que a sua consciência individual, toda uma consciência colectiva, com a qual a tribo se identifica, porque viram os mesmos filmes, leram os mesmos livros, viveram as mesmas experiências e sonham os mesmos sonhos.
É o rebelde que sonhou e ousou ir além, viver o sonho. Assumiu o risco. Excedeu a norma do mesmo dia, da mesma rotina, da velocidade moderada, da formalidade social, do reconhecimento do grupo, do medo de ser o palhaço no circo. Inovou. E, mesmo inovando, mudando, perturbando, foi aceite. Criou a nova norma.
Fabricou sonho, solidificado na realidade, que é objecto, é real, podemos tocar nele, comprá-lo, consumi-lo, mas também é história, era uma vez, faz de conta, o mundo das histórias de encantar, de quem queremos ser, da vida que desejamos ter e é símbolo de tudo isso, é iPhone, é iPad, é Virgin, é marca, aquele ferro que espetam no lombo da vaca e do bói. É propriedade. É ter.
O Empreendedor é tudo isso. Mas, olha para a madeira duma floresta e vê uma casa. E uma árvore é a casa.
A natureza é ser, da qual somos parte. Mas, evapora-se. Vai desaparecendo das cidades, das aldeias, das megalópoles. Enfim, do mundo dos homens. Vai perdendo espaço e tempo. Está passando para o mundo dos sonhos, das histórias e do mito. Quanto mais temos, mais acontece, menos somos, porque tiramos o que temos da natureza, do ser.
Não podemos ser salvos pelo D. Sebastião.
Eu sou uma comunidade. O meu corpo, uma comunidade de células e até de bactérias. A minha família. A minha cidade. O meu país. A minha espécie. A minha cidade. O corpo é meu. A família, a cidade, o país, a vida. Mas, eu também sou deles.
Existe uma duplicidade em cada indivíduo, ao qual ele nao pode escapar, do mesmo modo que uma moeda não pode esconder uma das suas faces, fingindo ser o que não é: apenas uma face. Eu sou Portugal. Portugal é meu. Mas, eu também sou de Portugal.
Não posso exigir uma solução do Empreendedor, do politico ou da Europa para um problema que também é meu. Eu também sou responsável pela solução. Eu e você. A comunidade é minha. Mas, eu também sou da comunidade.
Precisamos do empreendedor que é o herói dum povo, mas também do empreendedor que é o herói duma família ou dum bairro. Esse micro empreendedor fabrica sonhos. Podem não ser sonhos de toda a comunidade, inovações que mudam vidas. Mas são os sonhos normais que todos sonhamos. E precisamos de todos aqueles que participam na fábrica do sonho.
Não há empreendedores sem trabalhadores. E não há comunidade sem a inclusão do velho reformado, do jovem desempregado, da figurante que vive no café com o subsídio de reinserção social no bolso. Caricaturas.
Que comunidade queremos para viver, educar os filhos, envelhecer? Uma comunidade de pessoas felizes? Como é que construímos essa comunidade?
Que Portugal queremos? Depois da descolonização, já temos uma nova identidade? Quem é Portugal? Quem são os portugueses? Qual é o nosso papel no mundo? Para onde vamos?
Sabemos a história. A independêndia de Castela, os descobrimentos e as colónias. Um povo que assumiu o risco de morrer a navegar “por mares nunca dantes navegados” e a descobrir novos mundos, aberto a novas culturas, descobridores e não conquistadores, que lutou contra os mouros e contra Castela para ser independente. Sabemos quem fomos.
Somos um país pequeno, pobre e na periferia da Europa?
É uma questão de perspetiva. Veja Londres no mapa. Londres não é na Europa continental. Mas, é um centro. Não é uma periferia. Podia ser uma periferia. Mas, os ingleses sonharam como cigarras e trabalharam como formigas.
Quem partiu “da Ocidental praia Lusitana” para descobrir o mundo, domou o Cabo das Tormentas para lhe chamar Cabo da Boa Esperança. Quanto simbolismo nesse simples gesto de mudar o nome Tormentas para Boa Esperança, como se cada tormenta fosse apenas um desafio a vencer no caminho da boa esperança.
Precisamos de reencontrar o nosso ser. Saber a nossa natureza. Do que somos feitos. Pensar ideias para sermos protagonistas do mundo e da história. Sonhar e correr atrás do sonho. Podemos partir da Europa para o mundo. Mas, nunca seremos da Europa, porque somos do mundo.
Podemos pensar no problema do ter e ignorar a questão do ser? Quando reencontrarmos o ser, ter é apenas mais um destino na viagem do ser.