Imagine que está a tomar o pequeno-almoço numa manhã tranquila de domingo. O café fumega, o pão está quente, e o silêncio da casa é só quebrado pelo chilrear dos pássaros no jardim. O que não sabe é que, centenas de metros acima, um par de olhos mecânicos está a analisar o telhado da sua casa, a medir a distância entre os ramos da árvore que tanto gosta e as telhas que protegem a sua família. Não é um pássaro, nem um avião. É um drone. E não está ali por acaso, está a decidir se a sua apólice de seguro de habitação será renovada ou cancelada.
Parece ficção científica? Pois é a realidade que milhares de americanos estão a viver. E, como tudo o que acontece do outro lado do Atlântico, é apenas uma questão de tempo até que esta prática chegue à Europa e a Portugal.
Há uma década, falava-se dos drones como a grande promessa tecnológica: entregas rápidas, imagens deslumbrantes, ajuda em catástrofes naturais. Ninguém imaginaria que, em 2025, eles se tornariam os “fiscais do céu”, a julgar o estado das nossas casas sem que sequer saibamos.
Nos Estados Unidos, companhias de seguros já utilizam drones para inspecionar propriedades sem o conhecimento ou consentimento dos donos, o caso viral de uma moradora de Massachusetts, é emblemático. Depois de 12 anos como cliente exemplar, recebeu um email a informar que a sua apólice seria cancelada. O motivo? Ramos de árvores “perigosamente” próximos ao telhado, detectados por um drone que sobrevoou a sua casa sem aviso. A solução? Pagar 1.200 dólares para cortar os ramos de uma árvore que, nas suas palavras, era “linda”. Caso contrário, adeus seguro.
A pergunta que fica no ar é: até onde vai esta vigilância? E, mais importante, quem decide o que é um “risco” aceitável?
O que está em jogo aqui não é apenas a privacidade, mas a própria noção de propriedade e autonomia, as seguradoras não estão a usar drones por capricho, estão a comprar dados de empresas de “insurtech”, que vendem imagens aéreas e análises de risco como se fossem ações na bolsa. É um mercado em crescimento, alimentado pela promessa de eficiência e redução de custos. Mas a que custo para nós?
A porta vôz de uma organização de defesa dos consumidores, alerta, “As pessoas estão a ser excluídas com base em critérios como ‘mofos no telhado’ ou ‘telhas danificadas’, coisas que, há alguns anos, nem sequer seriam motivo para preocupação.” O que antes era resolvido com uma chamada telefónica ou uma visita agendada, agora é decidido por algoritmos que analisam fotos tiradas do céu.
E não para por aqui. Segundo o Wall Street Journal, até 2030, a tecnologia de satélites poderá permitir que as nossas casas sejam fotografadas e analisadas diariamente. Imagine, todos os dias, alguém ou algo está a avaliar se a sua vida cumpre os padrões de “segurança” definidos por uma empresa. Será este o futuro que queremos?
Em Portugal, ainda não chegámos a este ponto. Mas a pergunta é inevitável, quando é que esta prática chegará ao nosso país? Se as seguradoras podem usar drones para nos vigiar, o que impede que outras empresas façam o mesmo? Bancos a avaliar o valor da nossa casa para conceder créditos? Municípios a multar por “infrações urbanísticas” detectadas do céu? As possibilidades são tão vastas quanto assustadoras.
A tecnologia não é boa nem má, depende do uso que lhe damos. Mas quando ela é usada para decidir o nosso futuro sem o nosso consentimento, é altura de questionar.
Nos EUA, alguns estados já estão a discutir leis para limitar esta prática. Em Massachusetts, por exemplo, há uma proposta que obrigaria as seguradoras a mostrar as imagens capturadas, identificar os defeitos e dar direito a recurso. Em Portugal, ainda não há debate público sobre isto. Será que devemos esperar que o problema chegue para só então agir?
Há uma ironia nesta história, a tecnologia que prometeu libertar-nos está, cada vez mais, a controlar-nos. Os drones que deveriam salvar vidas em catástrofes estão a ser usados para cancelar seguros. As imagens que deveriam ajudar-nos a ver o mundo estão a ser usadas para julgar as nossas casas.
Talvez seja altura de olharmos para o céu, há verdades que só se revelam a quem olha para o céu com os pés assentes na terra.