A Alemanha acabou de dar um passo histórico, travou, com peso e autoridade, a proposta do “Chat Control”, o controverso regulamento da União Europeia que pretendia escanear, em massa, as mensagens privadas de todos os cidadãos em nome do combate ao abuso sexual infantil. A decisão, anunciada ontem pela ministra da Justiça alemã, Stefanie Hubig, não é apenas uma vitória para a privacidade digital, é um sinal de alerta vermelho para o futuro da democracia na Europa.
O que é o “Chat Control”?
Imagine que, a partir de amanhã, todas as suas mensagens no WhatsApp, Signal ou Telegram fossem automaticamente analisadas por um algoritmo antes mesmo de chegarem ao destinatário. Não importa se você está a combinar um jantar, a partilhar uma fotografia de família ou a trocar informações sensíveis com um médico ou advogado. Tudo seria escaneado. Tudo poderia ser sinalizado. Tudo poderia ser armazenado.
Foi isso que Bruxelas tentou vender como solução para combater a disseminação de material de abuso sexual infantil. À primeira vista, o objetivo é nobre. Mas o método? Um pesadelo distópico.
O regulamento, proposto em 2022, obrigaria plataformas de mensagens, inclusive as que usam criptografia ponta-a-ponta, a implementar sistemas de escaneamento automática de conteúdos. Ou seja, quebrar a privacidade para “proteger as crianças” tornou-se a desculpa perfeita para instalar uma infraestrutura de vigilância em massa.
A Alemanha diz “Nein”, e salva (por agora) a Europa
A oposição alemã não é surpreendente, mas é decisiva. Num bloco onde as decisões dependem de maiorias qualificadas, a Alemanha, com seus 83,5 milhões de habitantes, tem um peso determinante. Quando Jens Spahn, do partido CDU, declarou que “monitorizar chats sem suspeita é como abrir todas as cartas para ver se há algo ilegal dentro”, não estava a fazer uma metáfora. Estava a descrever o cerne do problema, a presunção de inocência morre quando o Estado espia todos por princípio.
Stefanie Hubig, ministra da Justiça, foi ainda mais direta:
“O controle de chats sem motivo deve ser tabu num Estado de direito. Comunicações privadas não podem estar sob suspeita geral.”
E não é só a Alemanha. Polónia, Países Baixos e uma coligação de pequenos Estados-membros já tinham manifestado rejeição. Com Berlim a juntar-se, a proposta fica sem apoio suficiente para avançar.
Os riscos que o “Chat Control” esconde
O fim da criptografia, e da segurança de todos, plataformas como Signal e Tuta Mail já tinham avisado, se o regulamento passasse, sairiam da Europa. Meredith Whittaker, presidente do Signal, foi taxativa:
“Criar um sistema que escaneia todas as mensagens é como instalar uma porta dos fundos na criptografia. E não há porta dos fundos que só os ‘bons’ possam usar.”
Ou seja, se o Estado pode espiar, hackers e regimes autoritários também podem.
Falsos positivos e a sobrecarga dos sistemas judiciais, Irene Mihalic, dos Verdes alemães, alertou para algo ainda mais perverso, os algoritmos de IA propostos têm taxas de erro altíssimas. Milhões de falsos positivos inundariam as autoridades, diluindo os recursos para investigar casos reais e transformando cidadãos comuns em suspeitos por engano.
Censura e exclusão digital, a European Digital Rights (EDRi) foi além: verificação de idade obrigatória, fim do anonimato online, exclusão de quem não tem documentos digitais. Ou seja, ativistas, denuncantes, jornalistas e até quem busca ajuda médica confidencial ficariam expostos.
A hipocrisia de Bruxelas: “Proteger crianças” ou controlar cidadãos?
O discurso oficial é impecável, “Salvar crianças do abuso.” Mas a realidade é que nenhum especialista sério defende a vigilância em massa como solução. Pelo contrário, países que já implementaram sistemas semelhantes, como o Reino Unido, com o Online Safety Act, viram vazamentos massivos de dados e um aumento da burocracia, sem provas de que o abuso infantil diminuiu.
O que a Europa está a propor não é inovação, é repetir os erros dos outros, com um agravante, normalizar a vigilância como política pública.
E agora? A batalha continua
A Alemanha pode ter travado o “Chat Control” por enquanto, mas a guerra está longe de acabar. Itália, Bélgica e Suécia ainda não definiram suas posições. E Bruxelas, como sempre, pode tentar reempacotar a mesma proposta com outro nome.
O que não pode acontecer é normalizarmos a ideia de que a privacidade é um luxo, e não um direito. Como escreveu o ativista Patrick Breyer:
“A Europa não pode dar ao mundo o sinal de que a privacidade digital é negociável.”
Em Lisboa, no Porto ou em Berlim, a questão é a mesma, queremos viver num continente onde o Estado pode espiar as nossas conversas a qualquer momento? O “Chat Control” não é só sobre tecnologia, é sobre que tipo de sociedade queremos ser.
Se a Alemanha resistiu, outros países podem, e devem, seguir. Porque a privacidade não é um obstáculo à segurança. É o seu alicerce.